NOS Alive 2º dia: A comoção calorosa do poderio femme 3.0
Mais do que um mero festival de música, o NOS Alive consolidou-se, nos últimos 3 anos, como um espaço de celebração da diversidade e inclusão. O segundo dia desta edição, ficou marcado por uma forte presença feminina, não-binária e drag em palco. Novos talentos como Jüra e Ashnikko brilharam, enquanto artistas aclamadas como AURORA, Dua Lipa e Gloria Groove solidificaram a sua influência com performances memoráveis…
Já começa a ser tradição falar do poderio femme que, finalmente, se sente no Passeio Marítimo de Algés. Se até 2022 este festival nunca tinha colocado uma artista a solo no palco principal, nestas 3 edições pós-pandémicas, a questão já não se levanta. Quem diria que o NOS Alive, se tornaria um dos primeiros agentes de mudança, onde agora somos convidados a celebrar a diferença e a construir um mundo onde quase todos os sons e vozes são valorizados.
Mergulhamos no fim da tarde escaldante de 12 de julho com uma voz vinda do outro lado do oceano, a norte-americana Ashnikko. Com hits como DÉjà Vu e STUPID, eletrizou a multidão com música irreverente e discurso empoderador. Para além de um concerto, foi uma celebração da individualidade e da auto-expressão, onde, curiosamente, captou a atenção de quem já sabemos ser difícil (quando não se trata de atrações principais). É verdade que o alinhamento do dia, em todos os palcos, atraía um público maioritariamente jovem, feminino e com muita energia. Contudo, a performance da artista não-binária (she/they) destacou-se como uma lufada de ar fresco, marcada pelo contraste com a passividade do público do dia anterior.
Já no WTF Clubbing testemunhamos um furacão de frescor e irreverência: Jüra. Mais do que uma mera atração, a artista portuguesa dominou o palco com uma energia contagiante e autenticidade que conquistou a plateia desde o primeiro momento. A sua voz poderosa e batidas difusivas ecoaram pelo recinto, como se a própria Lisboa estivesse a pulsar em palco. Dois anos após a sua presentação no Coreto deste mesmo festival, apresentou agora ao público o seu mais recente álbum, sortaminha (2024), um trabalho que consolida a sua posição como uma das intérpretes mais promissoras da sua geração.
Jüra, nome artístico de Joana Silva, já trilha um caminho sólido na música portuguesa desde 2019. Com influências que navegam entre o pop, R&B e rap, constrói uma sonoridade marcante, que se destaca pela sua honestidade e capacidade de abordar temas relevantes da sociedade atual, sem tabus ou receios. Mas não se limita apenas à música. A artista é também uma ativista pelos direitos das mulheres e da comunidade LGBTQIA+, utilizando a sua plataforma para dar voz a quem muitas vezes é silenciado. No NOS Alive’24, aproveitou o palco para defender a igualdade e o respeito pela diversidade, inspirando com mais uma das mensagens empoderadoras que são, na verdade, o grande mote deste dia.
AURORA e um cheirinho do que ainda está para vir
Entre Jüra no palco WTF e AURORA no Heineken, nadamos verdadeiras piscinas entre palcos, ditado pela sobreposição de horários. O cancelamento de Tyla e a confirmação de Arlo Parks em seu lugar acenderam a dúvida: “Porque não se migra AURORA para o palco NOS? Será o concerto num palco secundário apenas um aperitivo para algo maior em solo português?“. E não é que a intuição estava certa?
A meio da sua atuação, a artista norueguesa atiçou a multidão com a confirmação do seu regresso em nome próprio: 9 de maio de 2025 no Sagres Campo Pequeno. E se as primeiras impressões são tudo, podemos garantir que será daqueles concertos que não valerá só a pena, como a galinha toda! Horas antes, tivemos o prazer de conviver com ela, ao darmos uma pequena ajuda como videógrafos aos nossos colegas do Made of Things (entrevista a sair ainda esta semana). Aqui, verificamos em primeira mão, toda a peculiaridade do cérebro da artista. Aquela cabeça, vive no seu próprio mundo, e todo o exotismo que transpira não é um ato, mas sim uma qualidade inerente do seu ser!
Em palco, é dona de uma voz etérea e melodias hipnotizantes, onde tece uma tapeçaria sonora mágica em que o folk nórdico se entrelaça com eletrónica e art-pop. As canções do seu mais recente álbum, “The Gods We Can’t See”, ganham vida com arranjos grandiosos e visuais deslumbrantes que nos transportam para paisagens naturais exuberantes e mundos imaginários.
Além disso, e como seria de esperar, durante o espetáculo há uma forte presença de mensagens pro-Queer, pro-Trans e pro-Palestina. E ao contrário de algumas críticas dos menos conhecedores do seu trabalho, a politização da artista não é um problema, e enquadra-se muito bem neste novo e inclusivo NOS Alive. Afinal, qualquer fã que se preze, não se deixa incomodar por um manifesto artístico, que é um convite à reflexão e pura comunhão entre a artista e o seu público.
De volta ao palco principal, reencontramos Arlo Parks, onde garantimos ter sido mais feliz do que num festival a norte. Arlo emana toda uma aura e voz amorosas, a que lhes é impossível ficar indiferentes. E desta vez, toda a sua androginia que “se mescla com dança e movimentos frenéticos ao som de um ritmo remansado” passou muito melhor para uma plateia que se foi compondo para ver a estrela mais esperada da noite, Dua Lipa.
Imaginem sentir a melodia pulsar em cada fibra do vosso ser, mesmo sem o dom da audição. Essa foi a experiência transformadora que oito pessoas com deficiência auditiva vivenciaram no concerto da Dua Lipa no NOS Alive, graças à iniciativa “Colete das Emoções”. Através de coletes que traduziam as batidas e melodias em vibrações táteis, e de uma aplicação que oferecia legendas em tempo real e tradução em Língua Gestual Portuguesa, os participantes transcenderam as barreiras da audição e sentiram a música a dançar dentro deles. Para muitos, foi a primeira vez que puderam verdadeiramente se conectar com a essência da música ao vivo. A emoção era palpável, e até a própria Dua Lipa se comoveu com a experiência, comunicando-se com a plateia em língua gestual. É apenas um pequeno passo, dos inúmeros que a Access Lab tem dado para tornar este meio musical mais consciente e inclusivo. Esperamos que de futuro, iniciativas assim sejam cada vez mais recorrentes e a norma, em vez da exceção.
Quanto à atuação da anglo-albanesa, não há nada que possamos dizer que já não tenha feito escorrer rios de tinta pela imprensa. Ela soube agarrar o público mesmo com versões remixadas dos seus originais, e adaptar um longa setlist para um conceito de festival. É impossível sequer definir os temas mais celebrados da noite, pois esta artista que “passa em casa, no carro e em todo o lado” já conta com vasto repertório que é cantado por todos de pulmões abertos do inicio ao fim.
Um final de noite com tanto de triunfal como de ameno…
Ainda Dua Lipa tocava e já estávamos a reservar lugar para o que seria um dos concertos mais memoráveis desta edição (tal foi o trauma do dia anterior). O Heineken já nos fez muito felizes com presenças femininas como: a catarse de girl in red e aquele crowdsurf até à régie, o estrondo de saudosismo com M.I.A., o fenómeno que foi Phoebe Bridgers e muitas outras… Agora, foi a vez de experienciarmos a drag queen, Gloria Groove. A artista também mostrou que sabe dominar este palco como poucas, com coreografias impecáveis e interação constante com a plateia.
Erguida nas costas do brasileiro Daniel Napoleão (inspirado pela magnitude do universo Rupaul), Gloria passou por diferentes géneros musicais com maestria, desde o funk carioca ao pop internacional. A sua voz potente e versátil conquistou o público, que cantou junto cada verso e refrão, num recinto ainda completamente lotado após o fim da atuação da headliner do dia. Os seus inúmeros bailarinos também foram incansáveis do ínicio ao fim, e têm toda uma “coreo” pensada e treinada ao pormenor.
Acima de tudo, Gloria Groove é um espetáculo. Os looks extravagantes, a persona criativa e MAIS mensagens de empoderamento fizeram deste show uma experiência inesquecível. Provou que está pronta para conquistar o mundo, e o NOS Alive foi apenas mais um passo nessa jornada triunfal.
Quem não teve a mesma sorte e perícia em palco, foi Genesis Owusu. Vindo diretamente da Austrália, subiu de madrugada ao palco WTF Clubbing, e era uma das nossas grandes apostas. Com um estilo musical variado, que mistura elementos de soul, funk, rap, rock e eletrónica, Owusu prometia algo memorável. No entanto, a realidade foi um pouco diferente.
Ao vivo, a sua música soou desconexa e fragmentada. A mistura de géneros musicais, que em teoria poderia ser interessante, na prática não funcionou. Parecia que este João do Arco australino ainda está em busca de um som que o defina, experimentando diferentes estilos sem encontrar um que se encaixe perfeitamente. O facto de nenhum destes sons ser tocado ao vivo, também não ajudou. Tanto o vimos como uma espécie de wannabe Prince do século XXI, como junglist perdido, de vez em quando, na era grandiosa de dnb. Deambula tanto entre os seus 3 álbuns, que não dá um fio continuo à sua sonoridade.
E embora em streaming já nos tenha demonstrado talento e potencial, que até nos levou a cantar de pulmões abertos a icónica “Don’t Need You“, este nosso último concerto do dia, deixou a sensação de que o artista ainda precisa de encontrar a sua própria voz musical. Onde será imperativo ter elementos físicos a tocar instrumentos, porque sozinho, deixa-se completamente absorver pela imensidão do que é um grande/médio palco.
Não é que isto fosse uma “Guerra dos Tronos”, mas as ladies, pseudo-ladies e femmes, levam completamente o cunho de RAINHAS DESTE DIA!