Reportagem no 2º dia do Vodafone Mexefest 2014
Este ano temos duas equipas a saltitar de sala em sala durante o Vodafone Mexefest.
Tendo em conta os diferentes espaços em que ocorrem os concertos, por essa Avenida da Liberdade fora, Marco Almeida e Marta Sousa Pereira asseguram o registo fotográfico e Mafalda Saraiva e Joana Rita Sousa são as escrivãs de serviço.
Feras e perfumes perfeitos à solta na Avenida
Terminou ontem o segundo e último dia do festival Vodafone Mexefest, por onde passaram cerca de 13.000 pessoas. Rua acima, rua abaixo, de palco em palco, a música fez da cidade uma mexida festa. O chocolate quente aquece-nos a alma e os óculos com filtro faz-nos ver os mupis que os olhos não olham. Com algumas novidades e palcos novos, a distribuição das bandas pelas diversas salas foi melhorada, fazendo desta edição mais organizada.
Começámos a nossa viagem no BUS Vodafone para ouvir os Turbo Balkan Beats. Lá fora, as pessoas olhavam curiosas, mas dentro do autocarro o público dançou e abanou ao som de ritmos balcânicos.
Costumava eu dizer que o jazz é coisa de adultos, por isso fui assistir ao concerto dos Adult Jazz no Cinema São Jorge. Não que me sinta adulta mas na minha ingénua infância, à mera menção do nome jazz, recordava logo os discos vinil dos meus pais e imaginava um grupo de homens robustos a tocar uns acordes num qualquer bar com fumo de charutos e candeeiros a meia luz. Mas confesso que achei os ingleses Adult Jazz tão adultos quanto eu e até que tocam umas coisas engraçadas. A sala Manoel de Oliveira lotou e o público adorou. Burgess, Tim Slater, Steve Wells e Tom Howe estreiam-se com o álbum Gist Is e apresentaram-nos ontem à noite uma música pop desestruturada e desengonçada, que conquista logo ao primeiro embate. Gist Is é um disco sereno. Entre curvas e momentos de expansão, existem efeitos quebrados da percussão e bases instrumentais capazes de tecer o universo climático do grupo, mas o todo, apesar da jovialidade das acções, resulta contido, aproximando-se mais da música de câmara do que de lógicas rock. Foi um concerto calmo e divertido, como as crianças gostam que os adultos sejam.
O que faz uma pessoa que queria ser engenheira de som e desiste do curso? Torna-se cantora e compositora. O que faz uma pessoa que fugiu de um relacionamento destrutivo que mantinha com um namorado controlador? Edita quatro discos. E antes que me ponha com ideias de me tornar cantora, estou a referir-me a Sharon Van Etten. A artista norte-americana teve uma modesta estreia fonográfica em 2009, quando lançou o seu primeiro álbum, Because I Was In Love. A sua estreia em Portugal, no Lux em 2012, cumpriu todas as expectativas e mais algumas, e só surpreendeu pela revelação inesperada de uma humildade sem precedentes nem motivos. Ontem à noite regressou a Lisboa para apresentar o mais recente álbum Are We There. A timidez do «olá» que Sharon Van Etten lança à plateia bem composta do Coliseu dos Recreios não deixa adivinhar a força que se sente quando a cantora e compositora de New Jersey, acompanhada por uma banda de três músicos, abre a boca e se atira ao primeiro tema. O deslumbramento e a surpresa da artista foram revelados em toda a postura e numa de muitas conversas – não monólogos, mesmo conversas – que manteve com o público ao longo de um concerto que se tornou, também por isso, extremamente marcante. Perfeita ao vivo, a voz de Van Etten revela-se aqui menos Cat Power que em disco e mais Anna Calvi nos falsetes ou Patti Smith na rouquidão – ou até mesmo mais Sharon Van Etten, dir-se-á de outras em pouco tempo. Ver artistas tão talentosos, tão reais, despidos de máscaras, tão ali, tão acessíveis e até deslumbrados, como se ainda agradecessem por serem vistos ou entendidos. Sharon Van Etten é assim, como se não entendesse o que a atingiu, quando nós já sabemos que o céu é o seu limite.
De volta ao Cinema São Jorge, fomos experimentar o perfume perfeito. Chama-se Mike Hadreas, vive em Seattle (Washington, EUA) e já tem três álbuns editados. Apesar de ter passado por Portugal em 2012, no festival Super Bock Super Rock, eu só o comecei a ouvir há uns meses, quando me enviaram a música «Lookout Lookout». Bem sei que sou completamente viciada em perfumes, mas o tom dramático e melancólico desta essência norte-americana conquistou-me à primeira. Desde então que o oiço todos os dias. Quem? Perfume Genius, claro. Depois dos álbuns Learning e Put Your Back N 2It, editou em Setembro recente o seu terceiro disco de originais, Too Bright. A sua música é sensível, melodiosa e emocional, um perfume que muitos dizem ser genial. Há momentos em que o pouco faz muito. E tal como aquela música que me enviaram há uns meses tanto mudou do pouco que restou, Perfume Genius mostrou a perfeita expressão desta mesma ideia – o momento. A evidente fragilidade intimista das suas canções, levada ao palco por Mike Hadreas – apenas acompanhado por um teclista, um baixista e um baterista – às teclas ocasionalmente juntando-se uma guitarra acústica, foi acolhida por um público também ele frágil e íntimo. Os singles «Queen» e «Grid» retratam da melhor forma a tamanha intensidade de tanto que brota de quase nada e que criou um dos mais belos momentos de palco que vi nos últimos tempos.
As feras dizem adorar a nossa comida e sentem que o público português é sempre mais acolhedor. E antes de pensarmos que os artistas dizem as mesmas coisas ao mesmo público, lembramos que não há melhor peixe do que o de Sesimbra e esta é a quinta vez que os ingleses Wild Beasts actuam em Portugal. Editaram em Fevereiro o quarto disco de originais, Present Tense, sucessor do elogiado Smother (2011). E se o Smother era um álbum bruto, o Present Tense é um disco mais melódico e pop com uma mensagem muito política, com o intuito de sensibilizar e consolar as pessoas, e também de reaprender ideias e necessidades básicas. Não é fácil penetrar na fortaleza dos Wild Beasts. O universo artsy-fartsy é sério e não permite um único deslize mundano. Cada som obedece ao rigor táctico prático de quem se quer manter na margem e olha o mainstream com desconfiança. O baixista Tom Fleming defende, inclusive, que a arrogância é extremamente importante porque no fundo não deixam de ser um entertainer que transmite algo ao público. Tem de haver alguma arrogância no acto de comunicação porque é isso que legitima a vontade de expressar uma ideia. Não é auto-indulgência. Mas se em temas de Smother não há um milímetro de cedência, a banda indie-rock britânica aproxima-se agora cada vez mais da electrónica e consegue mesmo seduzir o público. Aliás, Hayden Thorpe e Tom Fleming (a voz, entenda-se) seduzem quem quiserem. A música, na maior parte, não é intectual. As letras de «Wonderlust», «Sweet Spot» e «New Life» carregam metáforas sensuais e melodias suaves. O rock é intencionalmente sexual, como se confirmou em «Pregnant Pause».
E assim terminou mais uma edição do Vodafone Mexefest, com bandas de renome, bihetes esgotados e salas lotadas.
Um festival que é um intervalo entre um coro africano e os jovens Palma Violets
Nas aldeias como aquela onde moro é habitual marcar encontros junto à igreja, por esta ocupar o lugar central e facilmente reconhecível para todos. Confesso que desconhecia a existência da Igreja de São Luís dos Franceses, ali tão perto do Coliseu e da Casa do Alentejo. Ao verificar os espaços do festival, no programa, não quis deixar de ir conhecer o espaço, sobretudo no dia em que o Coro Africano da igreja marca presença, seguido de Johanna Glaza. “Quem?”- foi esta a pergunta que fiz ao ver o nome no mapa dos concertos.
Tendo em conta a forma como a Igreja rapidamente se encheu de gente para receber Johanna Glaza pareceu-me que só eu é que estava longe de conhecer quem era aquela cantora de voz cristalina e leve presença. Eram muitas as pessoas que aguardavam no exterior da Igreja para tentar a sua sorte e conseguir um lugar para entrar e assistir a um momento único de harmonia entre o espaço físico, a luz, a voz e a música. A minha companheira de equipa, Mafalda Saraiva, escreveu ontem no facebook: “Não existe concerto mais bonito do que aquele em que existe cumplicidade entre o artista e o público.” A Mafalda referia-se ao concerto de Francis Dale; hoje, (ab)uso das suas palavras para descrever o que aconteceu na Igreja de São Luís dos Franceses, durante o concerto de Johanna Glaza. Cumplicidade, entrega, beleza e a possibilidade de termos deus ali mesmo a espreitar.
Conheci Pedro Lucas através da rádio. O seu verso “se abriste as portas do amor é para nunca mais fechar” pareceu-me divertido e… presunçoso. Quem é este rapaz para me dizer se posso ou não fechar as portas ao amor? É o Pedro Lucas – descobri mais tarde, numa pesquisa aleatória do You Tube. A loja Starbucks, do Rossio, foi o palco improvisado para o cantor que já tocou com Manuel Fúria, Salto e Os Velhos e que editou durante o presente ano o LP Águas Livres. Apresentou-se no Vodafone Mexefest num concerto que cumpriu mas não encantou.
Pelas 21h30m, na sala Montepio do São Jorge, Duquesa subia ao palco. Nuno Rodrigues, cuja voz conhecemos da banda Glockenwise, confessou-nos que Duquesa nasceu de uma espécie de ode ou dedicatória à sua namorada. O EP conta com apenas seis temas, todos eles encharcados em pop até ao tutano.
Os britânicos Palma Violets atraíram muitos até à Estação Vodafone.FM, na estação ferroviária do Rossio. O espaço estava cheio e mais uma vez presenciámos o fenómeno das filas esperançosas de um lugar para ouvir a banda de perto. Sam Fryer, Chilli Jesson, Pete Mayhew e Will Doyle partilharam connosco momentos de verdadeiro rock electrizante, daquele que exige tampões nos ouvidos para que possamos moderar a intensidade do som.
Para quem nunca tinha experienciado um Vodafone Mexefest – shame on me! afinal é a quarta edição… – o balanço é positivo. É uma possibilidade de viver a noite de Lisboa de uma forma diferente, assistindo a concertos únicos, em espaços também eles emblemáticos, por um lado, e improváveis, por outro.
Sem chuva, com frio – e boa música para aquecer a alma e o corpo: assim foi o Vodafone Mexefest.