Regresso ao futuro – reportagem no festival BONS SONS 2022
Saímos de Cem Soldos a 11 de Agosto de 2019 como sempre já a sonhar com o regresso no ano seguinte. Mas o regresso ficou suspenso, o sonho foi-se arrastando e só voltámos a Cem Soldos a 12 de Agosto de 2022, mil e noventa e seis dias depois, prontos para voltar a abraçar a aldeia que tanto nos dá.
No largo frente à igreja estão centenas de pessoas a dançar as batidas electónicas que OMIRI mistura com instrumentos tradicionais e gravações de populares a cantar, tocar ou trabalhar. As imagens são projectadas na fachada da igreja e o povo estende-se largo fora entre o movimento inquieto e a observação atenta. É o BONS SONS se o tivessemos de comprimir numa só imagem. E se duvidas houvesse, haverá mais algum festival neste país em que um artista saia de palco ao som de “Dá-me Uma Gotinha d’Água” e o público continue a cantá-lo já depois da música acabar? Só podia ser Cem Soldos.
Foi o destaque óbvio do primeiro dia, em que também vimos os Cancro a causarem caos no Giacometti, os Motherflutters a levantarem poeira no Variações, os Acácia Maior e a Marta Ren a fazerem a festa no Lopes-Graça e Rita Vian a fechar a noite no Zeca Afonso. Um dia de abrir o apetite musical mas sobretudo e inevitavelmente um dia de matar saudades da aldeia e de voltar a sentir essa coisa especial que se sente em Cem Soldos, onde descobrimos artistas em palcos com nomes de lendas. Vian, aliás, é neta desta aldeia da qual todos os que cá rumamos todos os anos já nos sentimos familiares. Mas Vian não só traz Cem Soldos no sangue como o faz na sua música, onde a tradição é integrada e incorporada na forma de cantar e nas melodias com uma naturalidade tocante.
Talento que também Bia Maria transborda, trocando os beats pré-gravados por uma guitarra acústica e deixando todo o brilharete para voz e letras – e bem. Foi a transição perfeita para o segundo dia que trouxe também o punk afiado dos já míticos Sunflowers, os refrães imbatíveis de uns Cassete Pirata em crescendo, o fado na voz de Aldina Duarte – tão fã desta aldeia como nós -, e mais um regresso de um dos muitos projectos de Manel Cruz, com os Pluto a trazerem a palco canções novas velhas e novas novas. E sim, quem se senta em silêncio a ouvir Aldina também pula na primeira fila de Pluto. No BONS SONS, como sempre, não há sobreposições. Nem suposições.
Ainda sem conseguirmos bem acreditar que depois de tamanha tempestade conseguimos mesmo voltar à aldeia (perdi a conta a quantas vezes ouvi “estamos em Cem Soldos!!!!!” durante os quatro dias), já entrávamos na recta final do certame. Em Cem Soldos, há rituais que se mantêm: visitar os burros da AEPGA, comprar tixas para a colecção e para a família, dormir uma sesta no Lopes-Graça (e quem sabe mais uma no Zeca Afonso), visitar as bancas das feiras, todas as tascas e pátios e jogar ao máximo de Jogos do Hélder que for possível. Para além do cartaz de concertos, no BONS SONS há muitos roteiros paralelos tão ou mais importantes do que a oferta musical.
Não que essa não seja de excelência. O Domingo começou ao sol no largo de S. Pedro a ouvir A Garota Não cantar as suas incríveis canções perante uma plateia empenhada em assimilar cada palavra. Continuou no mesmo palco com as Fado Bicha a serem tudo aquilo que o mundo mais precisa (o sentido de humor, a alegria como arma, a coragem do posicionamento, o anti-racismo em voz alta) e só acalmou quando os Terra Livre tomaram conta do largo principal. Foi Rui Reininho quem arrecadou todas as atenções ao apresentar o seu “20.000 Égua Submarinas” no palco Zeca Afonso – um dos melhores concertos desta edição de festival – e Sebastião Antunes e a sua Quadrilha que fizeram a festa total num Lopes-Graça cheio de vontade de dançar. Que o concerto com mais moche na plateia tenha sido este, culpa de uma certa “Cantiga da Burra”, também diz muito sobre o quão especial é o BONS SONS. Mas o dia ficou invariavelmente marcado pelo concerto que mais deu que falar aldeia fora: Criatura e Coro dos Anjos só subiram ao palco Variações já passava da uma da manhã, mas não mereciam, porque o espectáculo que ofereceram era coisa para largo da aldeia à hora do jantar – toda a gente devia viver isto. Ficam as reacções de admiração ouvidas desde a fila para a casa-de-banho da Tonita até aos lugares de trás do autocarro para Tomar: os autores de “Bem Bonda” deram um dos melhores concertos da história do BONS SONS.
Por entre a oferta do derradeiro dia de festival, que incluiu as sempre belas canções de Maria Reis (e até uma de Pegamonstro), a boa onda de André Júlio Turquesa, o objecto de culto que é B Fachada e o perpétuo movimento de Bateu Matou, há um nome que se destaca e causa discussões quanto a prununciação: quinta pancada ou quinta puncada? Os 5ª punkada em muitos aspectos são só mais uma banda de boas malhas: uns amigos que se juntaram porque queriam fazer música apesar de não saberem ainda tocar muito bem, com aquela vontade adolescente de rockar forte e feio. Só quando explicamos que este grupo de amigos vem da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra é que as sobrancelhas se levantam e as pessoas se apercebem que esta banda, afinal, não é só mais uma. Mas merecia ser, no sentido em que merecia pisar os mesmos palcos que qualquer banda pisa. Vieram à aldeia apresentar o disco “Somos Punks Ou Não?” que fizeram com os amigos Rui Gaspar (First Breath After Coma), Surma e Vítor Torpedo (The Parkinsons e, se me permitem, all around legend) que também trouxeram para o palvo Variações. O público do BONS SONS sabe receber e as palmas e coros fazem-se sentir em força.
Destaque ainda para o último concerto no coração da aldeia, que ficou a cargo do tesouro em pessoa que é Lena D’Água. A banda de apoio é um luxo e o alinhamento também: pérolas dos anos 80 sentem-se em casa ao lado de temas do belíssimo “Desalmadamente”, mas é no final, com apenas Lena em palco, que a magia se dá. “A Culpa É da Vontade” cantada a meias entre a sua voz doce e as vozes de Cem Soldos ficará como um dos mais bonitos momentos desta história chamada BONS SONS. Mais bonito só mesmo a forma como começámos o dia, com as Cantadeiras do Vale do Neiva nas escadas da igreja, sem microfones e com um vasto e atento público a deliciar-se com as histórias que aquelas mulheres e aqueles homens cantam, naquele jeito tão específico do Alto Minho e que assenta tão bem, aqui, em Cem Soldos.
É certo que as dores de crescimento se começam a sentir na nossa aldeia favorita, com a lotação dos espaços a parecer-nos excessiva em muitos momentos, mas a verdade é que a liberdade que a música portuguesa e o seu público respiram no BONS SONS continua a ser o que torna este festival tão especial. Seja um ano ou três outra vez, esperaremos sempre o tempo que for preciso para podermos regressar.
Fotos fornecidas pela organização e da autoria de Carlos Manuel Martins, Verónica Paulo e Vera Marmelo.