O último dia de NOS Primavera Sound trouxe (re)encontros especiais
Balanço positivo para o festival – com 100 mil visitantes segundo a organização – e para a cidade do Porto que segundo estima o ISAG viu mais de 36 milhões de euros a entrarem na sua economia. A edição de regresso do NOS Primavera Sound trouxe novos públicos e (muitas) novas marcas ao Parque da Cidade, mas a música continuou estrela maior e, para fechar em grande, foram Little Simz e Gorillaz quem mais luz ofereceu.
Três anos volvidos, há coisas que infelizmente parecem teimar em não mudar. Apesar dos anos complicados vividos pelo sector, pelos visitantes e pelo planeta no geral, o pink e o greenwashing continuam a reinar no mundo dos festivais. Se em 2019 a marca Primavera Sound foi quase pioneira na implementação de um cartaz paritário, em 2022, pelo menos pelo Porto, a equidade ficou à porta dos dois principais palcos. Com uma distribuição total do cartaz muito perto, de facto, dos 50 – 50, no palco NOS a divisão ficou pelos 75% nomes masculinos e 25% nomes de (ou com) mulheres contra 58% – 42% no palco Cupra. Ou seja, nos dois maiores palcos do festival a divisão foi de 66% – 33%, provando que a paridade no papel ainda está, infelizmente, muito longe da realidade. Quanto aos nomes nacionais nestes palcos a presença foi totalmente masculina. A sustentabilidade também tendeu a ficar mais nas palavras do que nos actos, com relatos de que os bebedouros do parque foram desligados (vimos apenas um funcional) e com a organização a insistir em distribuir pequenas garrafas de água de plástico por pelo menos imprensa, staff e segurança. Pequenos exemplos que lembram que apesar de termos passado dois anos a sonhar com o regresso, e por muito que saiba bem regressar à normalidade que conhecíamos, em tanta coisa, continuamos parados no tempo. Mas enfim, vamos à música.
Há muito que não se via uma enchente tão grande para o primeiro concerto do dia no Paque da Cidade. Só podia ser um filho da terra… do lado. David Bruno, também conhecido como o rei de Gaia, fez a festa no palco Super Bock perante uma plateia dedicada. Foi bom presságio para o que ainda aí vinha.
Helado Negro abriu o palco NOS com um convite a relaxar ao sol a piquenicar na relva da colina que o enfrenta. Sempre sorridente, Roberto Carlos Lange e banda trouxeram a sua pop folk expansiva a um Parque da Cidade que a soube receber. E por falar em saber receber, Portugal está cada vez mais amigo dos Khruangbin, que não se deixaram fotografar, mas que encheram o palco Cupra e levaram todos os presentes numa viagem pelas várias músicas do mundo, sempre com um toque de psicadelismo qb.
“Estes instrumentos não são nossos!” – foi das primeiras coisas que ouvimos os Dinosaur Jr. dizer em palco. De regresso ao festival pela terceira vez, a banda de J Mascis contou ao muito público que se juntara frente ao palco NOS que o seu equipamento ficou retido no aeroporto e que tiveram de improvisar. Não sei se iriamos reparar se não nos tivessem avisado, mas a verdade é que só provaram que estes veteranos (a certa altura também fazem questão de relembrar que são dos anos 80 – a banda formou-se em 1984 – e não dos noventas a que são mais frequentemente associados) sabem entregar excelentes malhas seja qual for o contexto.
Das guitarras aguerridas dos americanos saltámos para o flow e para a rima de uma pérola do norte de Londres. Dá pelo nome de Little Simz e chegou com estrondo ao Parque da Cidade ao som de “Introvert”. Com uma notável banda de apoio, um som claríssimo e um jogo de luz bem trabalhado, as rimas de Simz são entregues na dicção perfeita e o público tem a lição estudada. O resultado é um concerto especial, com os temas do último “Sometimes I Might Be Introvert” a serem a estrela principal.
Seguiu-se mais um cromo repetido do rock no palco principal, quando os Interpol voltaram ao NOS Primavera Sound também pela terceira vez. Mas ao contrário de uns Dinosaur Jr ou Nick Cave & The Bad Seeds, a banda nova-iorquina não parece ter uma história tão feliz com o festival. Talvez o regresso tenha sido demasiado próximo, é que 2019 tanto foi há três anos como ontem, e na última edição do festival Paul Banks e companhia já tinham vindo fazer mais ou menos o mesmo. Vieram agora apresentar disco novo perante uma plateia que não pareceu muito interessada. É o que dá brincar aos cromos repetidos – nem sempre resulta.
Podíamos chamar aos Gorillaz de cromos mas os desenhos-animados mais musicais do século XXI são só muito raros, pelo menos em palcos nacionais. Duas décadas depois do único concerto dado em Portugal, Damon Albarn trouxe banda completa e muitos convidados para fechar o festival em grande.
Começou já à uma da manhã mas desde início se percebeu que havia energia para dar e vender tanto na plateia como no palco. Albarn foi várias vezes ao fosso cumprimentar fãs e entre as primeiras canções mostrava-se tocado pela recepção barulhenta: “você é fantástico”, disse, a certa altura (obrigada, google tradutor?). Com Remi Kabaka Jr na percussão, Seye Adelekan no baixo e Jeff Wootton na guitarra a oferecerem as bases (e os dois últimos a distribuirem muito estilo palco fora) de uma banda acompanhada ainda por bateria, teclas, mais percussão e um trio de vozes, os Gorillaz em palco são muito mais do que as personagens que a minha geração cresceu a ver na MTV. Mas as canções são intemporais e o público reage a cada nova batida com um êxtase quase ingénuo, qual criança a quem repetidamente oferecem um novo brinquedo favorito.
As melodias de “Tomorrow Comes Today”, “Rhinestone Eyes” on “On Melancholy Hill” são entoadas pelo coro de milhares, as palavras de “Last Living Souls”, “O Green World” ou “Kids With Guns” são gritadas de braços no ar e os ritmos de “19-200”, “Stylo” ou “Andromeda” provocam mini pistas de dança na relva do Parque da Cidade. Mas havia mais na manga de Albarn e companhia para continuar a deslumbrar um público que já estava com dificuldades em acreditar que aquilo estava mesmo a acontecer. Se Robert Smith e Slowthai participaram nos seus duetos do disco “Song Machine” apenas através de ilustrações no écrã e voz pré-gravada nas colunas, Beck surgiu em palco de surpresa para partilhar “Valley of the Pagans” e a cantora maliense Fatouamta Diawara veio embelezar “Désolé”; o rapper Bootie Brown veio ajudar em “Stylo” e “Dirty Harry” e Little Simz espantou a acompanhar “Garage Palace”, a sua colaboração com a banda ainda na era de “Humanz”. Mas ainda havia um trunfo a revelar. Eis que Pos dos De La Soul se apresenta e introduz “Feel Good Inc.” para delírio de todos, e a gargalhada mais icónica dos Gorillaz volta a testar a capacidade vocal de uma massa humana que não arredou pé, e já passava das duas da manhã. Sem surpresas, o hino que é “Clint Eastwood” parecia que ia oferecer a despedida perfeita para este reencontro emocional entre banda e público. Mas eis que às duas horas e trinta da madrugada, hora marcada para o final do concerto, surge uma “falha” de som e as últimas notas e palavras da banda não se puderam ouvir. Final anticlimático que envergonha uns e confunde profundamente outros. Ao meu lado um jovem não se move e diz “não, eles ainda voltam, falta a “Dare”!”. Que não tenhamos de esperar mais vinte anos.
Pelo Parque da Cidade houve ainda Earl Sweatshirt no palco Binance, King Kami no palco Boiler Room ou Joy Orbison no palco BITS mas, para a maioria do povo que se deslocou ao derradeiro dia de NOS Primavera Sound, as medidas foram enchidas pelos cabeças de cartaz.