Mais vale SÓ! – Jorge Palma no CCB, a reportagem
21:15: depois de acomodados os jovens, menos jovens e bastantes crianças que esgotaram o Centro Cultural de Belém; depois do pedido de ‘desliguem os telefones, não apenas o som, que a luz do visor também incomoda’; depois do anúncio dos apoios; depois de a sala solicitar ruidosa e calorosamente a presença de Palma, o pano sobe.
O público de Lisboa e Porto foi convocado para dois dias de festa e acabou por responder que teriam de ser quatro.
A 28 de novembro iniciou-se a celebração da antologia e assistimos a um concerto antológico. Comemoram-se os 25 anos de Só, mas o seu criador cedo descobriu que estava bem, e muito, acompanhado.
Não é fácil, é mesmo tarefa árdua, escrever sobre uma obra com que crescemos e que, vimos esta noite, connosco cresceu também. Tentaremos contudo resistir ao trocadilho fácil e ao lugar comum, pois que o espectáculo com que o líder do Gang brindou o seu público nada teve de comum. O concerto de mais de duas horas foi servido num palco simples mas cuidado. Seis holofotes, um bengaleiro de pé e as lindíssimas imagens de André Tentúgal começaram por servir de fundo ao desfile do álbum lançado em 91. Na Palma da Mão começou uma belíssima viagem em que reencontrámos a genialidade de Jorge Palma enquanto autor e compositor e pudemos, uma vez mais, ver o curso superior de piano e os muitos anos a dedilhar teclas de piano ao serviço da Música. Vimos, como alguns gritaram durante o concerto, que o Jorge é “o maior”, mesmo e sobretudo quando tem brancas, quando comete erros, quando admite a inevitabilidade do engano (vamo’ lá ver onde é que me vou enganar agora) mas não desce o nível de exigência nem prescinde do rigor e por isso mesmo agradece: “vocês são muito generosos.”
Os quinze temas do álbum foram passados em revista, diríamos revistos e aumentados pois que as centenas e centenas de audições, mais a vida do autor, a nossa e a da outra lhes trouxeram múltiplos significados. Foi impossível deixar de ver o caráter autobiográfico de muitas das canções e os mais românticos terão esboçado um sorriso cúmplice quando o fundo do palco se vestiu de carmim para acompanhar “O Bairro do Amor”, esta noite dedicado a Rita, em jeito de agradecimento pela paciência. As quinze canções foram acompanhadas pelo público, primeiro em surdina, mais tarde assumidamente e por fim, com o próprio Palma a dirigir o coro que cantou A Gente Vai Continuar a plenos pulmões. E podemos jurar, juramos mesmo, que ouvimos suspiros de homens aparentemente nada carentes ao reconhecer os primeiros acordes do tema que dá nome à antologia.
Concluído o material de Só, chega a surpresa da noite. É um intérprete visivelmente feliz que se dirige ao público e anuncia: “And now for something completely different. Vou tocar Beethoven.” Alguns terão pensado tratar-se de uma piada, mas Palma pode, e sabe que pode, e deve tocar aquilo eu lhe dá gozo. Antes já desconstruíra a Canção de Lisboa, mostrando que roubou uns acordes a Mahler e explicara que o “rabinho final” da Terra dos Sonhos foi inspirado em Stockhausen. E é assim que A sonata nº 8, “Pathétique” com que deliciou todo o Centro Cultural durante cerca de vinte minutos, subitamente faz pleno sentido e a música erudita une o mais de um quarto de século das canções de Só com os temas que Jorge Palma prevê gravar brevemente.
É um artista absolutamente seguro da sua obra que em tom quase confessional se dirige ao seu público: “Tenho este piano, tenho vocês e tenho todo o tempo”. E por isso toca, repete, o que lhe dá gozo. Traz ao palco A Valsa de um Homem Carente, um novo e belíssimo Amor Digital, e a Mi Fá, que afinal percorre a escala toda. E traz ainda o belíssimo momento com Leo Ferré, Avec le Temps.
Quando de um camarote lhe gritam Dá-me Lume reponde: “Dessa não me lembrei”. E nem precisava. Porque a sala está, como disse antes, muito mais quente do esperava. Tão calorosa que lança: “Vou cantar Cohen” como quem acaba de descobrir o acepipe perfeito para terminar uma refeição perfeita e é com Bird on a Wire que nos fala de liberdade e abre caminho para mostrar O Lado Errado da Noite num daqueles serões em que até os enganos baterem certo.
Antes de sair é cantado por toda a sala, aquele que é um dos hinos de Jorge Palma, a exortação a um país que parece insistir em estar à espera (Portugal, Portugal). Pelo meio, aplausos, sorrisos, gargalhadas francas, saltos e muita emoção.