Lisboa parou para o Senhor da Boémia – Reportagem no concerto de Charles Aznavour no MEO Arena
Chegar ao local não foi tarefa fácil. O bulício habitual de sábado à noite na zona que ficou conhecida como a Expo, deu lugar a longas filas, atrasando o rendez-vous com aquele que aos 92 anos é por muitos considerado a grande voz da música ligeira mundial e um dos principais culpados pelo caos no trânsito.
Junto ao piano de cauda, Aznavoice fazia desde logo valer a pena todas as correrias ao saudar calorosamente o público. Num palco dominado pelo negro, com todos os intérpretes vestidos de preto, o cantor, sentado numa cadeira da mesma cor, dava início ao espectáculo. Propunha uma viagem pelas canções recentes, as de ontem e as mais antigas. Pelo caminho, homenageou Pessoa, de quem é leitor, e a cidade de Lisboa. Mas tivemos mais, tivemos uma sucessão de momentos certamente inesquecíveis para muitos.
Perdoará o leitor se chegou o momento em que uma emotividade a roçar o lamechas toma conta da escrita (algum dia teria de acontecer), mas a verdade é que uma atuação do Sinatra Francês é bem mais que um concerto; é uma grandiosa elegia ao espetáculo musical e à comunicação.
Aznavour começa a cantar, sentado, tranquilamente, e a sua voz parece aquecer o espaço em volta. Percebemos então que a sua mão esquerda treme, tememos que o mesmo aconteça à voz, mas nem uma nota sai fora de tom. Vemos que também a mão canta e não há como não nos deixarmos enlevar pelo génio deste multifacetado francês de origem arménia, cantor, ator, diplomata, … que canta também e magnificentemente com o olhar; como só um grande interprete sabe fazer, dando força às palavras, ora vincando uma ironia, ora acentuando algum traço de humor…, num diálogo permanente com o espectador.
Numa produção cuidada em que registamos apenas uma nota negativa para o som do pavilhão no momento em que Aznavour deu mais uma prova o seu brilhantismo ao dizer o poema de uma das canções, quase foi arruinado pelo eco da sala, o cantor teve no apoio vocal Magali Ripoll e Katia Aznavour, sua filha – com quem interpretou Je Voyage em dueto. Ao apresentar os seis músicos que o acompanhavam referiu que, contrariamente ao habitual, faz questão de trazer consigo um pianista de música erudita, assumindo-se, contudo como “Cantor de Variedades”.
É já depois tirado o casaco, com os magníficos suspensórios pretos e vermelhos claramente à vista que caminha, e depois dança, pelo palco com a leveza de há pelo menos três décadas. E não importa se um dia terminámos um baile de garagem sonhando ter ou ser uma She igual à dele ou se pela nossa idade a conhecemos primeiro em versões de outros cantores – é inevitável não dançarmos com ele.
Quando se ouve o seu Ave Maria, todo o auditório o acompanha com a contenção respeitosa pedida pelo tema. Quando Aznavour canta La Bohème todos temos vinte anos. Quando dá as costas ao público e mima uma dança sensual em Les Plaisirs Demodés ou quando introduz o magnífico Comme Ils Disent falando de liberdade de pensamento – ele que no alvor da década de 70 teve a coragem, com este tema, de se meter na pele de um homossexual não o sendo – ao longo de toda a atuação, em suma, é impossível não reconhecermos o enorme privilégio que é estar diante deste Senhor.
É talvez por isso que Emmenez-moi, que encerrou a noite, ia ainda a meio e já todo o Meo Arena aplaudia de pé, talvez pressentindo o final, ou apenas porque era preciso expressar fisicamente algumas das emoções emergentes. E quando ao sair nos cruzamos com uma espectadora que ia confessando “Fartei-me de chorar, que estupidez!” toda a objetividade nos abandona. Porque a compreendemos. E como compreendemos!