Fascínio Massivo – reportagem no concerto dos Massive Attack no Campo Pequeno
Falo-vos agora da arena do Campo Pequeno. Do meio da arena/plateia em pé da grande casa de espetáculos esgotada a 18 e 19 de fevereiro pelo público dos britânicos Massive Attack vindos a Lisboa para celebrar os 21 anos de Mezzanine.
Tomo a liberdade de vos falar na primeira pessoa para melhor explicar que se é verdade que há bem mais de 24 horas enfrentei a longa fila de carros para deixar o parque de estacionamento após o concerto, não é menos verdade que parte desta lisboeta média, em quase tudo menos na altura, está ainda suspensa no encanto do espetáculo de segunda feira. Falo-vos e escrevo por isso ainda de lá, embora o planeta tenha entretanto dado quase duas voltas sobre si mesmo sem que tenhamos descoberto para onde foram todas as flores.
Exposta a lisboeta média (em quase tudo menos na altura) será fácil preverem que não encontrarão aqui a opinião de um expert nem muitas considerações teóricas sobre a banda e o seu trabalho. Uma visita rápida às memórias diz-nos que Blue Lines, o álbum de estreia (1991) captou desde logo as atenções mundiais para estes mestres da música de fusão e eclectismo constando, tal como o agora festejado Mezzanine, de 1998, na tabela dos 500 melhores álbuns de sempre da Rolling Stone. Ambos foram sucessos de vendas no Reino Unido, sendo que o terceiro álbum da banda é o seu mais importante sucesso comercial até à data, tendo ocupado lugares cimeiros nos tops do Reino Unido, Austrália, Irlanda, Nova Zelândia, …
Foi medianamente informada sobre a banda e, admiradora confessa ainda que não profundamente conhecedora que, na posse do bilhete, disse de mim para mim que o destino, o acaso ou a produtora me estavam a dizer que abrisse bem os ouvidos pois não adiantaria muito a metro meio de gente abrir os olhos. É bom de ver que embora sabendo do lado espectacular do ponto de vista cénico do seu trabalho este foi o primeiro contacto com os Massive Attack ao vivo.
Poucos minutos após as 20h30 começaria uma viagem de duas horas que passou por Mezzanine acrescido de mais uma mão cheia de temas. Com a música veio uma produção irrepreensível ao nível do som, iluminação e vídeo. Desta forma um álbum descrito como uma “fusão de trip hop e electrónica, conjugando uma claustrofobia sombria e melancolia” foi-nos trazido de finais do século XX para 2019 fazendo boa parte do público interrogar-se se terá mesmo a simbólica idade de 21 anos. É que com as vozes magníficas de Horace Andy e a da inefável Elisabeth Fraser veio a dura realidade deste já não tão novo século em que, como podemos ler no gigantesco ecrã “fora das cúpulas do prazer as guerras intermináveis continuam”; vieram imagens de morte, destruição e dor; veio a família real inglesa mais ou menos ridícula; veio o “disco sound”; vieram risíveis primeiro ministros britânicos; veio Putin e veio Trump (sempre vaiado, é claro!); vieram as farmacêuticas e as suas, tão nossas drogas; veio, enfim, todo o século XXI numa abordagem claramente política que procurou pôr o dedo em todas as nossas feridas e instar-nos a tomar posições: “you are the centre of everything”, “THINK, DARE, DO” encontram-se entre as mensagens escrita em diversas línguas.
É de um espetáculo que une magistralmente música, imagem e palavra num diálogo performativo de cariz universalizante que se trata. E todos os que como nós “lá em casa” tinham brincado com o facto de uma banda que sempre tivemos como de excelência para tocar em fundo poder ser um pouco exasperante ao vivo, vimos o quão enganados estávamos. É, isso sim, um projeto que nos toca fundo, bem fundo.
Afinal a lisboeta média, em quase tudo menos na altura viu, ouviu, sentiu e comungou de muito mais que o esperado, testemunhando o fascínio-quase-espanto que nos chegou em doses massivas. E se é difícil destacar pontos altos em duas horas plenas de genialidade, é impossível não referir a interpretação pungente de Where have all the Roses Gone? acompanhada de imagens de uma violência avassaladora (Síria, …?) subitamente, e para alívio de todos cortadas pelo magnífica Dorothy do Feiticeiro de Oz a arrancar um sorriso coletivo, logo cortado pela aparição de Putin no ecrã, tornando claro que “we’re not in Kansas anymore”.
Guiados por Elisabeth Fraser na emocionante Teardrop e Group Four chegaríamos ao final de uma magnífica narrativa. Após duas horas de espectáculo, grande parte do público parecia querer recusar que não houvesse encore, embora todos e cada um soubéssemos que não poderia haver pois, tal como pudemos ler em letras garrafais, agora
Está na hora de deixar os fantasmas para trás e começar a construir o futuro.
Foto: Everything Is New