Esperamos sempre por ti, Raquel Tavares!
“Por tanto esperar por ti/ Deixo um recado na porta/ Faz de conta que morri/ E não me esperes de volta”. Pedir isso é algo quase impossível. O Coliseu dos Recreios rendeu-se ao Fado, um pouco mais moderno, que se tem ouvido; e ao tradicional, interpretado pela “nossa menina”. A noite de 21 de Abril vai ficar na memória de alguns, por muito tempo. Para que a memória não se perca, o João Salema fotografou e a Sofia Teixeira registou as seguintes palavras:
De um lado, Lisboa, com a sua tradição bairrista e o sangue fervilhante entre as veias; do outro, a lindíssima Raquel Tavares, em tons de dourado, com uma voz imcomparável. Sente-se o amor de uns e o agradecimento da outra parte.
De luzes apagadas, plateia muito bem composta e o silêncio necessário, soltam-se os instrumentos tão específicos ao Fado. O público estava agarrado. Começamos com uma analepse que nos conduz à infância de Raquel, à descoberta da sua paixão que é a música e às primeiras experiências nela.
“Meu coração de criança não é só a lembrança / De um vulto feliz de mulher / Meu coração vagabundo / Quer guardar o mundo em mim”, assim é o Coração Vagabundo desta artista.
Faz já vinte anos que subiu a esta sala de espetáculos, bem longe de imaginar que um dia estaria neste palco, por nome próprio, com os seus temas, “porque foi Deus que assim quis”. E nunca acreditaria no sacrilégio que é ter uma bateria a acompanhar o instrumental deste género musical. Mas não a interpretem mal. É uma necessidade adaptarmo-nos às novas tendências e Raquel já não tem nada a provar no que toca a tradição: “Sei que tenho o aval da velha guarda”.
“E há sempre uma razão, outro amor / Há sempre esta paixão / Que me diz que vem gostar de quem Gosta de nós”, como diz o tema que interpreta, Gostar de Quem Gosta de Nós, escrito pelo seu amigo Tiago Bettencourt.
“Olá, Lisboa”, saúda ela. De volta leva gritos entusiásticos como “És linda!”; “Minha Raquel” e “Vai, Leoa”. Nas suas palavras, diz que pensou em tanta coisa para dizer, porque fala muito e este é o maior sonho da sua vida: fazer a música de que gosta, no seu país, com os seus e para todos os que a quiserem ouvir. Fica um agradecimento do fundo do coração, “porque vocês estão a fazer parte do maior sonho da minha vida. Estão a participar nele”.
“Rosa, roda a saia / O vento muda, empurra a moda / Nem que a rosa caía/ Nada nunca, pára a roda / Vai Rosa cobaia / Arredonda-a bem / Que essa tua saia, já foi da tua mãe”. E é aqui que se fala de Tradição. Este é o tema da autoria de Miguel Araújo e que fala de um dos conflitos interiores de Raquel. A necessidade de acompanhar o rumo que as coisas tomam, sem perder a tradição; a importância de dar continuidade, sem estragar o que já foi feito.
Aqui surge a ponte com os momentos de Fado tradicional, neste concerto. Falou-se dos nomes da velha guarda, que representam uma geração de gigantes, como Maria da Fé e o seu Livramento, Fernando Maurício e a grande Beatriz da Conceição. Não faltaram os momentos cómicos, em vídeo, onde Beatriz diz que Raquel quer ser como ela, mas está perdoada. Posto isto, ofereceu-lhe o seu xaile negro, para que nada falhasse nesta tão importante noite.
“Nunca voltes ao lugar / Onde já foste feliz/ Por muito que o coração diga/ Não faças o que ele diz/ Nunca voltes ao lugar onde o arco-íris se pôs / Só encontrarás a cinza / Que dá na garganta nós”. São estas as Regras da Sensatez, em que se fala em amor, encontros e desencontros, de mágoa e de felicidade: duas caras que a moeda do Fado comporta.
À ordem de Raquel, o público canta. Os gestos, a postura, as pausas e as variações de nível falam por si. Não é um habitual concerto pop; é a vinda de um pouco do que se faz numa casa de Fados a um palco de grandes dimensões, para um público mais alargado: “Um muito obrigada a vocês, que com as dificuldades que existem, num mundo que está a cair em desamor, estão a abdicar das vossas coisas do dia a dia para estarem aqui”.
“Chega de tragédias e desgraças / Tudo a tempo passa, não há nada a perder / Meu amor de longe voltou/ Só para me ver”. Meu Amor de Longe é o tema obrigatório. Esta intérprete de Fado diz que foi este o tema que a puxou para o reconhecimento, “se é que se pode dizer que seja um hit”.
Fica o agradecimento ao manager e amigo, João Pedro Ruela, “por sempre ter acreditado neste talento”. Uma noite em que se apresentou o disco Raquel, com cerca de um ano, de alguém que “defendeu o Fado tradicional com unhas e dentes”. Acompanhada dos amigos e grandes músicos: André Dias, na guitarra portuguesa; Bernardo Viana, na viola de Fado; Daniel Pinto, no baixo, “que não é baixo” e Fred Ferreira, na bateria.
Quando todos julgavam dar o concerto por terminado, houve quem ao palco se dirigisse para deixar flores e bilhetes de parabéns e carinho. Mas seguiu-se a reviravolta inesperada. Com alguns já a saírem do lugar, aparece Raquel, vinda do palco para o meio da plateia. Faltava cumprir um sonho: o de tentar cantar, sem microfone, entre as pessoas, no meio daquela sala e de forma a que a sua voz se ouvisse na mesma. Afinal de contas, nos antigos tempos de Fado, “Cada um tentava cantar o refrão mais alto, para ver quem mais se fazia ouvir, durante minutos a fio”.
Uma noite de emoções, onde nada ficou por fazer; para se ouvir e sentir, esta é a tour que honra a música tradicional portuguesa e que passou pelos Coliseus.
Edição de Joana Rita