Dupla Zambujo/Araújo: da amizade adolescente para 17 concertos esgotados
Foi uma autêntica maratona de concertos que António Zambujo e Miguel Araújo se propuseram protagonizar nos coliseus de Lisboa e do Porto. O público, aos milhares, continua a pedir mais e mais.
António Zambujo e Miguel Araújo têm mostrado, na sua jornada de 17 datas nos coliseus, que o público nacional está a consumir a música do seu país de uma forma diferente, menos descomplexada e mais assumida como património de que nos devemos orgulhar.
Durante cerca de duas horas de música em ambiente familiar os dois artistas trouxeram ao Coliseu dos Recreios fado, música brasileira e até incursões pelo estilo de Bob Dylan.
Tudo começa com palco e sala escuros. O único foco de luz começa por incidir sobre Miguel Araújo que, sem dar voz, toca logo umas guitarradas bobdylianas. Apaga-se a luz sobre o primeiro e acende-se sobre o segundo: António Zambujo num sempre assombroso ‘Foi Deus’. Se viria a ser uma noite com muitas homenagens, então que se comece em grande com Amália Rodrigues. ‘Recantiga’, ‘Romaria de Santa Eufémia’ e ‘José’ saem logo de início para uma primeira de muitas conversas com o público. A primeira intervenção serve para falar de Samuel Úria e ir buscar uma composição sua, ‘Valsa do Vai e Não Vás’, muito aplaudida por um público que ficou conquistado… mal entrou no Coliseu, arrisco.
A princípio a decoração de palco parece muito básica, quase esquecida mas, à medida que o concerto vai acontecendo, vamos percebendo que está ali com um forte propósito: o de remeter para as lides das terras mais a sul onde tantas vezes estes dois amigos se juntaram para conviver e cantar. No final, a homenagem é feita à dona da ideia, Ana Sequeira, que reciclou um conjunto de escadotes de vindima dos quais pendiam um conjunto de luzes baixas de cores quentes, em amarelo, laranja e vermelho escuro. As sombras que os escadotes fazem dão ainda outra perspetiva ao aspeto visual do palco. Os dois cantores estão sentados em escadotes mais pequenos, como que improvisados à porta das tabernas alentejanas que ambos recordam, mesmo que Araújo seja natural da Maia, Porto. ‘Fui Colher Uma Romã’ é uma “modinha” que vem das entranhas desses ambientes onde também se encaixa a ‘Rosinha dos Limões’, de Max, igualmente lembrado e admirado por Zambujo.
Mas se este é um concerto em que ambos nos oferecem as suas tradições musicais, nem só de campos alentejanos se pode alimentar, por isso, Miguel Araújo vai buscar Bob Dylan para fazer uma versão sua de ‘Don’t Think Twice It’s Allright’. Nada muito pretensioso, todo o concerto é apresentado como se fosse só mais um serão a percorrer as adegas dos amigos.
Miguel Araújo poderá estar, quase sem dar por isso, a criar um novo estilo de autor de músicas. Se, há algumas décadas, o intérprete era a inequívoca estrela, deixando o autor quase sempre num papel de quase eremita cujo sofrimento era o combustível para composições deslumbrantes, o músico, que se popularizou com Os Azeitonas, dá a cara por tudo aquilo que faz. Quer cante, quer “empreste” a quem o queira fazer. São exemplos disso o fado ‘E Tu Gostavas de Mim’, celebrizado por Ana Moura. A cantiga versa sobre motociclos a vapor e o Boavista Campeão. «Tinha que arranjar maneira de pôr o Boavista aqui pelo meio», brincou Araújo.
Seguem-se ‘Cucurrucucu Paloma’, ‘Cielito Lindo’ e ‘Pica do 7’ e misturam-se tão bem que parecem uma única música. Mais conversa animada, mais gargalhada solta entre os fãs e chega um momento de maior intensidade: a sombria interpretação de um clássico brasileiro dos anos 30, ‘No Rancho Fundo’, de Ary Barroso, na voz do músico alentejano. Mas a brincadeira veio a seguir: «Nós também não sabíamos que esta música era dele porque a conhecemos na versão de Chitãozinho e Xororó, a ver a “Tieta”. Muitas músicas do nosso imaginário ouvimo-las nas telenovelas… no “Roque Santeiro”, por exemplo…». E Zambujo ainda diverte numa dose tão equivalente quanto impressiona ao imitar a voz de Elba Ramalho em ‘De Volta Pro Meu Aconchego’.
‘Os Maridos das Outras’ é tocado com ukulele e mostra ser um hino entre muitos casais portugueses já que, uma vez mais, cada palavra está decorada e cada frase perfeitamente entoada pelos fãs num ambiente que tão depressa é festivo, como parece ser recuperado dos ensaios reservados a amigos que lhes conhecem cada trejeito no cantar. A simplicidade e “fofice” das letras serão, talvez, os segredos que as tornam tão populares e de presença tão fácil entre nós.
Depois de vermos Zambujo a pegar numa guitarra elétrica, com o encore, é Miguel Araújo que passa para o piano e a reta final arranca com os Queen e uma ‘Bohemian Rhapsody’, cantada na quase totalidade pela plateia. ‘Anda Comigo Ver os Aviões’ e a doce ‘Lambreta’ deixam-nos o sorriso bom no rosto de quando as coisas acontecem no sítio certo… à hora certa.