Dead Combo – Um bando de meninos adultos. A reportagem no Coliseu de Lisboa.
Entrámos no Coliseu dos Recreios e percebemos de imediato que iríamos assistir a um concerto inspirado nos circos de início do século XX. As galerias decoradas com longas faixas vermelhas, uma arena montada no centro da sala e o já habitual altar pouco sagrado, com recordações mexicanas, grafonolas, caveiras e rosas vermelhas. Mas sejamos sinceros: os Dead Combo sempre actuaram no aconchego do seu habitual teatrinho, num cenário de romantismo decadente, misto de cabaré e sala de estar acolhedora.
Assim que as luzes se apagam, surge na varanda principal um grupo de saxofonistas e trombonistas a dar início a um dos melhores concertos a que assisti este ano. A banda de Tó Trips e Pedro Gonçalves chega acompanhada por um mestre-de-cerimónias (o actor David Almeida) que avisa sarcasticamente o público: «Dezembro é o mês do circo, mas infelizmente não vai haver circo porque os palhaços foram todos de cana. Eu também sou contra o uso de animais nos circos, mas esta noite vamos ter connosco dois animais. Senhoras e senhores, eles são os Dead Combo». Mas o ensemble introdutório do espectáculo não ficou por aqui. Surge na cena um amolador de facas com as míticas bicicleta e harmónica a anunciar a sua chegada, um talhante com um cutelo na mão e, embora seja cada vez mais raro cruzarmo-nos com este comerciante ambulante, assistimos mesmo ao feito dos seus serviços.
Com o circo montado, os “palhaços” vestidos a rigor sentam-se no centro da plateia e dão início ao espectáculo com o tema que retrata um país abandonado, deixado à mercê de um destino que não se vislumbra no horizonte – «Povo que cais descalço» e logo de seguida uma música do tempo do liceu – «Miúda e Motas». A sala do Coliseu dos Recreios não é de todo a mais intimista, mas a dupla aproveitou o cenário do Circo de Natal do próprio Coliseu de Lisboa para nos contemplar com um cenário íntimo e inspirado nas trupes circenses de início do século XX, no qual os próprios artistas se transformaram nas personagens principais.
A identidade está definida: os Dead Combo são aquilo que nasce quando Trips e Gonçalves se encontram. Por isso, O Bando de Meninos não foi um corte no percurso da banda. Foi um regresso. Os Dead Combo reeditaram em novembro A Bunch of Meninos, o seu mais recente álbum de originais, e para encerrar um ano extraordinário para a afirmação da dupla, esmeraram-se com um concerto mágico com algumas participações especiais. Carlos Tony Gomes (violoncelo), Bruno Silva (viola de arco), Denys Stetsenko (violino) acompanharam a dupla em temas como «Putos a roubar maçãs», «Arraia» e «Rumbero». A soprano Ana Quintans surpreendeu uma sala esgotada com a versão de «Like a Drug», dos Queens of the Stone Age. E as músicas «Pacheco» (dedicada ao guitarrista de fado que tocava com Hermínia Silva), «Cacto» e «Manobras de Maio 06» foram enaltecidas com bateria, teclados e metais da Orquestra das Caveiras – um grupo de jazz do qual fazem parte Alexandre Frazão, Ana Araújo, Jorge Ribeiro, João Marques e João Cabrita.
As palmas e os assobios do público ao fim de cada música exemplificaram na perfeição como este bando de meninos adultos são capazes do maior rigor e compenetração e de extraírem o mais tocante sentimento. Pedro Gonçalves é mais sorridente mas sisudo. Tó Trips mais mexido mas escondido. Porém, se o homem da cartola ia apresentando os temas com humor e concisão, foi mesmo o seu parceiro que agradeceu a todos os que têm acompanhado e facilitado a jornada dos Dead Combo até agora. Aliás, é esta identidade preponderante que tanto os define, esta ideia de fantasia, de um imaginário emanando da música, que leva a carismática dupla a falar tanto de uma «Lisboa Mulata» – que deu título a um disco, como dos homens do jazz à `porrada´ com marinheiros no Cais do Sodré – «Lusitânia Playboys», ou até mesmo da mulher atrás de um balcão no Bairro Alto – «Sopa de Cavalo Cansado» e «D. Emília» (dedicada à Dona Emília que tanto os atura na sala de ensaios da ZdB).
«É estranho estar aqui nesta sala convosco. É estranho mas muito bom», desabafa-nos Pedro. Nem Tó Trips e Pedro Gonçalves acreditavam que, um dia, chegassem a este ponto de reconhecimento, com um álbum em primeiro lugar do top e um regresso ao Coliseu por sua conta, nem o segredo do seu sucesso é coisa óbvia ou facilmente imitável. Depois de tantas estórias contadas e tocadas, como a dos dois amigos que certa noite, após um concerto de Howe Gelb, rumaram ao Bairro Alto e criaram os Dead Combo, anunciam o fim com «Bunch of Meninos», talvez o momento mais rock do novo disco.
Perante um público visivelmente satisfeito, eufórico e grato, a banda volta para tocar os temas «Hawai em Chelas» e «B. Leza», mas desta vez num palco superior e decorado com um santuário. Eu, que adoro o estranho e o diferente, não digo que foi bom, mas excelente. Eu, que nunca gostei muito de circos, fiquei com muita pena que o público se tenha apressado e não tenha esperado pelo segundo número deste circo do século XXI. Sim, havia segundo encore e ficaram por tocar as músicas «Malibu Fair», «Ai que vida» e «Dos rios», com a dupla perdida em aventuras no México mais ou menos profundo. Obrigada Dead Combo por fazerem sempre mais por muito menos.