Dead Combo no Coliseu dos Recreios
Uma semana depois do lançamento de A Bunch of Meninos e de breve passagem por alguns pontos do país, Lisboa recebeu finalmente a apresentação ao vivo do novo álbum dos Dead Combo. Em formato intimista, Tó Trips e Pedro Gonçalves conseguiram tornar memorável a noite de ontem, aproveitando ao máximo as potencialidades cénicas do Coliseu de Lisboa e transformando-o num autêntico calabouço de jazz em que Tom Waits uiva inquietamente à lua, entre rosas, caveiras, molduras antigas e quadros.
De forma ainda contida, “Povo que Cais Descalço” abriu um espectáculo de gradação crescente na sua intensidade. Se a influência do fado já era mais que evidente na música dos Dead Combo, no novo trabalho esta atinge um nível superior, transportando-nos para a madrugada das ruas escuras de Lisboa. Há uma sensibilidade quase ressentida que se manifesta em alguns momentos de A Bunch of Meninos, sendo este sobretudo um disco de lamentos proferidos por quem vagueia sozinho pelos becos escondidos da cidade. Segue-se “Waiting for Nick at Rick’s Café” e já nos encontramos em território blues de melodias lentas e envolventes a confessarem uma boémia adormecida. Esta não tem tempo de se instalar e em “Miúdas e Motas”, ou «o sonho de qualquer adolescente do liceu» nas palavras de Trips, a estrada abre-se à nossa frente e as guitarras lembram os tempos áureos de uma Route 66 sem fim.
“Mr. Eastwood” é a primeira explosão da noite, com autênticos trovões a fazerem tremer o chão. Evocam-se os míticos westerns de Sergio Leone sob um sol abrasador e os acordes explodem numa fúria tremenda. É, principalmente pelas paisagens sonoras que criam, que a música dos Dead Combo se torna tão interessante — é impossível ouvi-los e não imaginar um universo só seu, em que criam histórias insólitas. Logo de seguida ouve-se “Waits”, um dos melhores temas do novo álbum, que funciona como homenagem ao mais misterioso de todos os músicos, o grande vampiro que poderia ser parente afastado da banda. “Rodada” mantém o ambiente incendiário e prepara o tom provocador de “Pacheco”. Pedro Gonçalves senta-se ao piano e Trips arranha a guitarra, falando-nos de figuras que adoraríamos conhecer. Por esta altura, os aplausos no fim de cada música eram já ensurdecedores.
Funcionando como curto interlúdio e quebrando o ritmo da sequência anterior, “Mr. Snowden’s Dream” situa-se no domínio de um terror mudo. Não a imaginávamos tão negra ao vivo, mas o ambiente quase fantasmagórico que cria é admirável. Em “Dona Emília”, os Dead Combo desdobram-se em sonoridades mais dançáveis e “Cachupa Man” do anterior Lisboa Mulata infiltra-se na perfeição por entre as mesmas. “Arraia” marca o meio do espectáculo e surge ainda mais encorpada do que em disco, fazendo o retrato de uma cidade perdida no tempo através de inúmeras subtilezas na densidade musical do tema.
Seguem-se os momentos mais efusivos da noite com o sombrio “Rumbero” logo sucedido por “Lusitânia Playboys”. Vamos em passeio do Bairro Alto até ao Cais do Sodré e cá está a irreverência típica a que a banda nos habituou, apresentando-nos os boémios, os noctívagos, os arruaceiros. A grande decadência lisboeta. Os temas são vertiginosos e as notas soltas do contrabaixo beijam-nos caoticamente. Num registo mais despido e acústico, “Zoe Llorando” e “Welcome Simone” são dedicadas às filhas dos músicos, mantendo-se “Esse Olhar Que Era Só Teu” na mesma linha melódica.
Perto do fim, dá-se o regresso às origens com “Eléctrica Cadente”, talvez um dos temas mais agressivamente crus do seu repertório. Durante o mesmo, cai o pano que se situava atrás dos músicos e revela-se um Coliseu vazio que observa a plateia em cima do palco, surpreendida perante o golpe de mestria. Pedro Gonçalves mostra-se genuinamente emocionado, agradecendo a presença de todos e anuncia que em Dezembro os Dead Combo voltam a ocupar a sala, desta vez com o público “do lado de lá”. Há tempo para histórias sobre desventuras no México antes de atacar “Dos Rios” que invoca imediatamente a alma do país.
Finalmente, “A Bunch of Meninos” é a última música antes do encore e, pelos ruidosos aplausos, percebe-se que era seguramente um dos temas mais esperados. O single contagiou o público e progrediu de um modo quase surrealista pelo ambiente que agora se havia instalado. De volta, tocam-se “Malibu Fair” e “Lisboa Mulata” que levam os ânimos ao rubro e terminam o concerto da melhor forma. Um espectáculo incrível em que os Dead Combo firmaram a sua posição como uma das melhores bandas portuguesas das últimas décadas e demonstraram o enorme potencial do novo álbum.