A Música ultrapassou a Costa – Reportagem no 3º dia d’O Sol da Caparica
Martin Elbourne diz que os festivais de música deixaram de ser contraculturais para passarem a ser parte da cultura. Hoje multiplicou-se o número de festivais e multiplicaram-se as formas que os mesmos assumem: existem desde acontecimentos para grandes massas de público a festivais destinados a um público específico, quer seja o afecto ao blues ou à world music, quer seja realizado em espaço urbano ou rural, quer se destine a um público mais velho, já sem a energia e a paciência de outrora, ou a um público jovem e ávido por ver em palco os nomes que descobriu o mês passado na Internet. Durante este fim-de-semana decorreram três grandes festivais. No nosso site tivemos mais de dez festivais agendados. Não dá para ir a todos, lamentamos. Durante os três dias d’O Sol da Caparica passaram 60.000 visitantes. Ontem à noite os bilhetes esgotaram, as bilheteiras fecharam. Dezenas de pessoas ficaram à porta do recinto para ouvir Anselmo Ralph. Espreitavam por entre ombros para ver o concerto num dos plasmas do palco. Não, não é em vão que se substituiu o termo «Cultura de Massa» por «Indústria Cultural».
Ver todas as fotos de Aline Frazão n’O Sol da Caparica
Vinte e poucos anos, angolana, viajada, estudante em Lisboa, passa por Barcelona, ganha asas na Galiza e deixa-se contaminar pela cultura e novos sons dos novos mundos e novas gentes, sem permitir que a grande distância a que deixou Angola lhe nublasse a visão sobre a realidade do seu povo. Visão aguda, clara, desassombrada, despida de rodriguinhos e postais ilustrados para turista ver. Com ritmos quentes africanos e influências do jazz, Aline Frazão é a nova e aclamada sensação da música angolana. Assente nos seus dois discos a solo, o primeiro Clave Bantu e o mais recente Movimento, a jovem cantora e compositora angolana apresentou no terceiro dia do festival Sol da Caparica um concerto soberbo, revelador do seu à-vontade nos palcos, a sua versatilidade e expressividade vocal. As canções de Aline Frazão, abençoadas pela sua voz, mergulham no quotidiano de hoje, o que ela conhece e o que nos é próximo, transversal ao tempo e às gentes. Aline mostra-se de guitarra ao peito, mas teve a seu lado o trio com que habitualmente toca: Francesco Valente, contrabaixo e baixo eléctrico; Marcos Alves, bateria e percussão; Marco Pombinho, piano e Fender Rhodes e tocaram músicas como «Tanto» e «Lugar Vazio».
Ver todas as fotos de Capicua n’O Sol da Caparica
A Capicua é a Ana. E Ana lê-se de trás para a frente como os números capicua. Conquistou há dois anos o hip-hop nacional com um álbum homónimo, Capicua. Agora regressa com Sereia Louca. Os dois momentos altos do concerto? A partilha do palco secundário com Mistah Isaac em «Domingo Velho» e «Casa no Campo» e ainda com Aline Frazão em «Lupa», já a terminar o concerto. Apesar de ter sido um momento inédito em palco, ambos os artistas participam no seu mais recente disco, dividido em duas partes – a Cabeça e a Cauda. Mas voltemos ao início. Capicua sobe ao Palco Blitz e o público petrifica. Muitos não estariam certamente à espera da sua determinação, ousadia e irreverência em palco, mas à segunda música, «Jugular», a plateia percebeu ao que tinha ido. E decidiu ficar. Ana M. Fernandes tem trinta anos e é através do rap e do hip-hop que aborda questões que lhe interessam e a preocupam, como a condição da mulher, a ecologia, a relação dos portugueses com o seu passado, a memória, o amadurecimento. Entre beats, flows e com uma pronúncia do norte, a rapper canta versos como «Eles têm medo de que não tenhamos medo», «Pior do que o meu canto será o meu silêncio», «Sou comandante da guerrilha cor-de-rosa», das músicas «Medo do Medo», «Sereia Louca» e «Maria Capaz». Palavras que ilustram o retrato de uma mulher destemida que não se deixa ficar atrás, com uma visão social, “mais Mafalda do que Susaninha”, bem à imagem do Porto que a viu nascer. Na companhia de M7 e entre muitos «Façam Barulho», Capicua foca-se em Sereia Louca. A sereia, criatura mitológica que funde mulher e peixe, inspirou o novo álbum de Capicua, o sucessor da estreia homónima de 2012. Tornou-se especialista em sereias, desde a Pequena Sereia de Hans Christian Andersen às que encontrou nos mares d’Odisseia de Homero – e descobriu que Mário de Sá-Carneiro tinha posto a expressão “sereia louca” no poema Estátua Falsa. “Sereia louca” pode desdobrar-se em “serei a louca”, uma sereia fora do seu habitat natural. Uma sereia rapper que actuou pela primeira na Costa da Caparica, e dedicou a música «Mulher do Cacilheiro» a todas as mulheres da Margem Sul. A canção surgiu de um convite do sociólogo Boaventura de Sousa Santos para um espectáculo em torno do pós-colonialismo – sim, Ana licenciou-se em Sociologia e doutorou-se em Geografia Humana – e é um exemplo da escrita de Capicua, atenta aos pormenores da vida quotidiana, e capaz de elevá-los poeticamente. Quis tentar uma escrita mais “lírica” desde que começou a “rappar”, no início da década de 2000. Depois aliou-se a Marta (ou M7), que a acompanha desde então. A vida no feminino é um dos temas de Sereia Louca, o envelhecimento é outro. Para terminar o concerto, em «Vayorken» (“Nova Iorque” na linguagem de Ana Matos enquanto criança) ouvimo-la a lembrar de onde vêm o brinc dance (o breakdance, entenda-se), o graffiti, o hip-hop e Jane Fonda – “de Vayorken”, claro.
Ver todas as fotos de Sensi n’O Sol da Caparica
Permitam-me admitir que não sou grande apreciadora do estilo musical de Sensi e de Anselmo Ralph. E Sensi, assim que subiu ao Palco Blitz, fez muitas referências a Anselmo Ralph. Por ser filho de quem é, Vasco Pinto Ferreira nasceu no meio da música. Desde cedo teve o privilégio de conviver tanto com artistas e produtores musicais, como com todo o tipo de instrumentos e máquinas de produção. Com a música a correr-lhe no sangue, foi a sonoridade do Hip Hop, do Soul, do R&B e do Funk que mais o seduziram, as mesmas que Sensi traz no seu mais recente trabalho a solo, Pequenos Crimes Entre Amigos. Além da especial participação de Frankie Chavez e Selma Uamusse, o artista cantou temas como «Eu Quero…», «Dia a Dia», «Não dá para fugir» e «Introspecção».
Ver todas as fotos de Ceuzany n’O Sol da Caparica
No Palco SIC/ RFM a artista Ceuzany cantava «Último Chance». Nasceu no Senegal, mas em cima do palco perguntou por Portugal, Angola e Cabo Verde. Gravou o seu primeiro álbum – Lume d’Lenha – com a sua antiga banda Cordas do Sol, da qual Arlindo Évora é vocalista e compositor. O disco foi um sucesso estrondoso e agora tem o seu primeiro disco a solo – Nha Vida. Um trabalho que contou igualmente com o suporte do grupo, mas que revela uma Ceuzany mais adulta, onde todo o seu talento vocal sobressai. A tomar o pulso à noite, num andamento dolente, a artista mostrou as características que a catapultaram para o sonho de carreira a solo: voz, poder interpretativo, simplicidade e presença em palco. As canções «Mariana» e «So Nos Dôs» deram outra vivacidade ao espectáculo e uma réstia do perfume dos Cordas do Sol evocados no incontornável «Minin d’rua».
Ver todas as fotos de António Zambujo n’O Sol da Caparica
Uma das coisas que eu mais gosto quando há concerto de António Zambujo é saber que vou encontrar o seu manager, meu amigo, Tiago Cação. Outra das coisas que eu mais gosto quando há concerto de António Zambujo é idolatrar as suas músicas e saber as letras de cor. É como se estivéssemos nós mesmos em cima do palco a cantar para uma plateia vazia. «Flagrante», single do novo álbum – Quinto – há muito que abre os seus concertos. Do mesmo há ainda «Lambreta», «Algo estranho acontece» e «Fortuna», mas também viajamos um pouco por Outro Sentido e ouvimos «Nem às paredes confesso» e «Quando tu passas por mim». Em equipa que ganha não se mexe, por isso António Zambujo nunca falha, mas contínuo a defender que o fadista alentejano merece salas acústicas, onde o ruído não distrai, onde o vento não interfere.
Ver todas as fotos de Frankie Chavez n’O Sol da Caparica
Falhas e interferências foram coisas que não faltaram na terceira e última noite d’O Sol da Caparica. No palco secundário, o concerto de Frankie Chavez atrasou 27 minutos e o de Rita Red Shoes 57. Sim, sou muito precisa quanto a números porque quando queremos assistir a todos os concertos, é necessário ser-se rigoroso com os horários e a com intercalação de concertos. Falha um, falham todos. Depois de muito tempo sem os microfones a funcionar, Frankie sobe ao palco acompanhado pelo baterista João Correia, da banda Julie and The Carjackers. Com um novo trabalho editado este ano, Chavez apresentou Heart and Spine e cantou músicas como a conhecida «Fight», «Long Gone» e «Sweet Life». De guitarra portuguesa ao peito, convidou o baixista Nuno Lucas e a vocalista Selma Uamusse para dividir o palco consigo.
Ver todas as fotos de Rita Redshoes n’O Sol da Caparica
Já o mesmo não aconteceu com Rita Redshoes que visivelmente chateada de tanto esperar, cantou a primeira música quase sem se ouvir. A vocalista que tem vindo a apresentar o último álbum, Life is a Second of Love, bem se esforçou para pedir aos técnicos mais voz, mas sem efeito. E sem efeito ficou o concerto porque havia começado o espectáculo de David Fonseca no palco principal e, apesar de ter dois olhos tatuados nas costas, só tenho dois ouvidos. Uma pena.
Ver todas as fotos de David Fonseca n’O Sol da Caparica
Enquanto me dirigia para o Palco SIC/RFM ia trauteando a primeira música de David Fonseca. De repente, fez-se silêncio. No palco, o ex-vocalista dos Silence 4 cantava e tocava guitarra freneticamente. O público assobiava, ora animado, ora indignado. O que eles ouvem não é o mesmo que nós ouvimos, ou deixamos de ouvir. Rapidamente a produção faz sinais de luzes e David apercebe-se do havia acontecido e agradeceu ao público elevando a guitarra aos céus. Saem de cena, mas regressam novamente com uma cover de Sol da Caparica, dos Peste & Sida. Mas a meio da música, faz-se novamente silêncio e já ninguém achou piada. Saem de palco e passados longos 17 minutos, surge o produtor do festival a pedir desculpa pelo sucedido. Como à terceira é de vez, David Fonseca regressa ao palco e desabafa «Podemos ficar sem som as vezes que quiserem, que nós voltamos sempre», suscitando uma enorme salva de palmas por parte dos milhares de visitantes que ocupavam o recinto. Arranca sem problemas com «A Cry 4 Love» e canta clássicos como «Kiss Me, Oh Kiss Me», «Superstars», «Stop 4 a Minute» e «This Ranging Lights». Lançou balões, saltou para perto do público e cantou as míticas «Video Killed The Radio Star», dos Buggles, e «The 80’s» através do «objecto mais precioso de todos. O telefone. Que faz chamadas para o passado».
Ver todas as fotos de Anselmo Ralph n’O Sol da Caparica
O festival Sol da Caparica devia ter a regra dos três S – Surf, Sol e AnSelmo. Começa a música. Entram em cena bailarinos. Sobe ao palco principal a grande estrela da noite e chovem confetes dourados e prateados. Anselmo Ralph é uma espécie de Justin Timberlake no que toca a dar shows para a sua extensa legião de fãs. A minha Mãe é angolana e em casa a televisão liga-se em canais africanos. Uma vez vi um concerto dele do início ao fim e fiquei de boca aberta. Digam o que disserem, pensem o que pensarem, ele faz. E bem. Não fosse ele uma das figuras preferidas no programa de televisão The Voice e não esgotasse todos os seus concertos. Começa com «Sem Ti» e ouvem-se gritos, assobios, palmas. Fãs de 6 e 60 anos, crianças que passaram por mim ao longo do dia a perguntar aos pais se ainda faltava muito para o concerto de Anselmo. Os bilhetes esgotaram. O mote «A Música deu à Costa» perdeu o seu sentido, porque do lado de fora do recinto, centenas de pessoas espreitavam por entre ombros para ver o músico no plasma do palco. Anselmo é uma espécie de febre contagiosa, como se colocássemos uma gota de perfume Ralph e vivêssemos felizes para quase sempre. «Quem tem preguiça é melhor sair do caminho» avisou o artista que cantou «Curtição», «És a única mulher», «Aplausos para ti» e «Está difícil». Naturalmente, o clímax do espectáculo foi ao som de «Não Me Toca», mas Anselmo Ralph conseguiu dar um dos melhores concertos dos três dias de festival.
Para o ano há mais, garantiu o Presidente da Câmara Municipal de Almada, orgulhoso e feliz com o resultados da primeira edição d’O Sol da Caparica, despedindo-se com um muito político «Viva a música portuguesa!» Nós também nos despedimos felizes com a nota positiva.